Sobre… Audiência Publica para a Apresentação dos Resultados do Observatório de Violência e Socioeducação do DF-OVES/DF

Íntegra da fala realizada, remotamente, em audiência pública na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), no dia 12 de abril de 2024, por ocasião do compartilhamento dos resultados da Pesquisa “Observatório de Violência e Socioeducação no Distrito Federal: Violências Vivenciadas por Adolescentes em Espaços Educativos e na Socioeducação do Distrito Federal (2019–2022)”.

Prof. Gersiney Santos
8 min readApr 12, 2024

Olha o menino! — Olha o menino”, por Caetano Veloso.

Arte desenvolvida pelo Gabinete 24 do Deputado Distrital Fábio Felix

2024. Ano seguinte ao fim de um dos períodos mais intensos como pesquisador de temas sociais. Após um período intenso de diálogos, estruturação e enfim prática, é, antes de qualquer coisa, um marco poder realizar esta fala. Tê-la, por fim, compartilhada, assim como o projeto “Observatório de Violência e Socioeducação no Distrito Federal: Violências Vivenciadas por Adolescentes em Espaços Educativos e na Socioeducação do Distrito Federal (2019–2022)” — ou OVES-DF —, originado no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual de Mulheres, Crianças e Adolescentes (Violes/SER/UnB), é literalmente um feito. O OVES-DF não poderia ter saído das ideias nem do papel sem o envolvimento dedicado de pessoas de impressão. Todas as trocas dos intensos meses de construção jamais serão esquecidas, dado ter sido patente quanta fé na transformação esteve presente, por parte de cada pessoa participante. Minha gratidão!

É desse modo que posso começar, que podemos continuar, melhor dizendo; não a título de memória, mas de (ininterrupta) prospecção. Ainda assim, como é de minha prática, a fim de avançar, não posso deixar para trás a contribuição do conjunto que compôs o que hoje já é história. Dessa forma, gostaria de agradecer a equipe do OVES-DF as assistentes de pesquisa Tamires dos Anjos Silva, Juliana Guimarães Godinho, Marcela Ferreira Rocha, Laísa Raquel Rodrigues, Rebeca Nunes Berka, Daliana Medeiros Cavalcanti, Yasmin Vitoria Gomes Alves e o auxiliar de pesquisa Eduilson do Rosário de Souza — este dois últimos, pessoas egressas do sistema socioeducativo; igualmente, presto homenagem a minhas parceiras da comissão técnico-científica, com as quais estabeleci bastantes debates, representando-as na figura da grande Profa. Maria Lúcia Pinto Leal; meus agradecimentos também para a equipe de formação em pesquisa do OVES-DF, que, a partir da articulação do pesquisador Douglas Aparecido da Silva Gomes, ajudou as assistentes no percurso de trabalho com a socioeducação; ainda, aproveito o momento para fazer um agradecimento especial à querida (e bastante prestativa) Euzilene Morais, que não mediu esforços para oportunizar os momentos mais centrais do dia a dia de trabalho. Eu e a equipe reconhecemos a importância do trabalho em rede, por isso, destacamos o apoio da Organização de Sociedade Civil Transforme, a qual, por meio da participação direta de sua presidenta Claudia Britto, auxiliou-nos na condução de vários estágios da investigação — inclusive no contato com as pessoas responsáveis pelo acesso às unidades do sistema socioeducativo: Unidade de Internação de São Sebastião (UISS), Unidade de internação de Santa Maria (UISM) e Unidade de Internação Feminina de Gama (UIFG); Unidade Socioeducativa de Semiliberdade Feminina do Guará, Unidade Socioeducativa de Semiliberdade Metropolitana; e a Gerência de Atendimento em Meio Aberto do Guará (GEAMA-Guará); além da Gerência de Atendimento em Meio Aberto de Sobradinho (GEAMA-Sobradinho). No processo das entrevistas há que mencionar a parceria de Marcilene Frazão — que, junto comigo, vivenciou vários lados das narrativas compartilhadas. Em especial, sou absolutamente grato a cada adolescente que consentiu dividir comigo e com as pesquisadoras de campo suas histórias e tão complexas narrativas. É também por isso que considero um marco estarmos aqui: um passo a mais já observando uma rota em construção.

É especificamente sobre o entendimento de evolução que interpreto, como então coordenador-geral do Observatório, a intersecção entre ontem e amanhã, a partir de hoje: a materialização da pesquisa e consequente entrega compartilhada dos resultados do OVES-DF.

Vivemos em um dos países mais desiguais do planeta. Isso, de um jeito ou de outro, quando se é gente brasileira, percebe-se porque se vive, mesmo que de forma indireta. Sou um pesquisador de viés crítico, analista de discurso. Em meus trabalhos, trato direto sobre a existência. Vida implica existir. Sou linguista de formação e a querida Universidade de Brasília (a UnB), onde me doutorei, o Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (o NELiS) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (do CEAM), bem como o Laboratório de Estudos Críticos do Discurso (LabEC) — todos ambientes de pesquisa da UnB –, onde pude amplificar meus estudos de pós-graduação, mostraram-me a dimensão da linguagem articulada à ação, mas a transformacional, que já mencionei. A linguagem, aqui falando desde o lugar de linguista analista de discurso, em níveis rasos e abissais, é capaz de revelar, mas também de esconder; pode ser transfeita, manipulada. Como um fenômeno natural, qual a água, a linguagem, por alguns, é abordada com impressionante pouco cuidado ou desatenção. Um fato perigoso, a caracterização pura da negligência sobre o que tem potência de realizar e transformar a Vida. Linguagem é tecnologia. Como já outrora enunciado, linguagem é o que faz de mim eu por pressupor a existência e a consequente deferência ao outro. Sou, enfim, um homem negro, e isso vem colocado por ‘último’ porque é em mim é sinônimo de rema. Explico. Nos entendimentos funcionalistas da Linguística, em uma oração, rema é toda informação que concentra maior carga de sentido (ou, para quem prefira, significado); referindo-se ao início comunicacional, desenvolve-se após o tópico central do que se quer passar. Neste momento de fala, portanto, o tema sou eu, mas nunca só sou eu: somos nós, por exemplo, eu e os outros tantos cidadãos e cidadãs negras como este pesquisador linguista doutor coordenador-geral, uma população a qual, segundo dados do ano passado — de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública –, batem recorde presencial em espaços de privação de liberdade (transbordando alarmantes 60%). Mesmo com os dados e índices, sabe-se disso porque se vive isso no Brasil, no século XXI, há séculos.

Voltando à centralidade de, mesmo no processo de desenvolvimento, não abandonar o que veio antes. Adolescentes, portanto, não devem ter destinos selados. Lembremos — e difundamos de forma incessante — que cidadania, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), deve começar na infância, estendendo-se pela adolescência em diante, e a que essa defesa se estabelece resguardada na Carta Maior (cujo diretíssimo epíteto é “Constituição Cidadã”). Desse modo, adolescentes, a parcela de ação do OVES-DF, podem ser vistos como o primeiro passo da consciência crítico-reflexiva sobre cidadania e necessitam de garantias para exercer seu direito a ser veículo motor do ser e fazer cidadão. Como já sabemos, as intervenções para alcançar esse objetivo vital têm de se alinhar, conectar-se cada vez mais, especialmente quando esse momento de consolidação cidadã, que é a adolescência, vê-se atravessado pela dureza genética brasileira da desigualdade.

Desde a Constituição de 1988, o Brasil vem sistematicamente tentando reestruturar muitos caminhos secularmente desencontrados. É o que podemos refletir sobre a situação da primeira juventude não pertencente à classe dominadora deste país. Quando crianças e adolescentes passam a ser um quadro vivo desses desencontros, a cidadania precisa de fato impor-se, de maneiras consistente, e mais criativas. Sobre isso, há que abrir os olhos para como nossos e nossas adolescentes e jovens, geração de tempos desencontrados, estão tendo seus percursos reorientados, particularmente quando são compreendidos como resultado da própria falta diacrônica e sincrônica do Estado. Mais especificamente, estou falando de garotos e garotas que, ao mesmo tempo que estão descobrindo-se como pessoas com desejos, vontades e opiniões, compõem a população dos meios aberto, semiaberto e fechado da progressista proposta do Sistema Socioeducativo do Brasil. Na defesa da cidadania, não se poderia falar da proposta do OVES-DF sem ressaltar a relevância do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (o SINASE) e, ainda mais, da necessidade de sua efetiva implementação.

No que toca a este momento de partilha, retomemos os resultados ora articulados sobre a socioeducação no contexto do Distrito Federal a partir da construção das bases para o Observatório. Além do processo de construção fortemente orientado à horizontalidade, o OVES-DF teve como outro de seus maiores destaques o fato de termos ouvido diretamente esse público adolescente em suas experiências dentro dos espaços educativos da Socioeducação (no recorte temporal de 2019 a 2022). Durante a feitura da pesquisa, a parte que também me coube — além de alinhar as mentes e as ações da equipe e das pessoas colaboradoras — disse respeito à construção do trabalho qualitativo. O momento voltado ao trabalho de interação com as e os adolescentes socioeducandos foi construído de modo a pôr em prática meus estudos sobre a conexão discursivo-cidadã como meio para a transformação social: o que, em minhas mais recentes publicações, venho caracterizando como Redes Pragmáticas.

As Redes Pragmáticas, uma metodologia baseada nos Estudos Críticos do Discurso, foram essenciais para estruturarmos a maneira como cidadania e linguagem (e vice-versa), em perspectiva discursiva, poderiam se articular para um movimento de, com base nos letramentos de reexistência da Dra. Ana Lúcia Silva Souza, transformação reexistencial. Para tanto, aliado ao desenho tradicional de pesquisa qualitativa (com métodos como observação participante e entrevistas, em parceria metodológica com a Profa. Maria Lúcia Pinto Leal, referência em pesquisa no Serviço Social), fundamentadas nas RP, foram pensadas estratégias que estimularam a participação das vozes socioeducandas por meio da expressão linguístico-discursiva, em que os e as adolescentes colaboradoras puderam, de um modo mais caloroso e envolvido, comunicar as vivências dentro dos três níveis do sistema socioeducativo. Em linhas gerais, como resultado, foi montada uma metodologia em que alguns modos de linguagem puderam ser apropriados para que as vozes adolescentes comunicassem suas vivências no processo socioeducativo e, a partir disso, configurar, por meio de seus discursos, os cenários vivenciados dentro da Socioeducação. Dessarte, além do aspecto verbal (baseado nas palavras escrita e falada), a prática multimodal (a junção do verbal com imagens, sons, formas etc.) auxiliou-nos no processo quanti-quali previsto no projeto, desembocando em uma prática metodológica diferenciada.

Todo o processo de consolidação para a base de um Observatório de Violência e Socioeducação foi um conjunto de desafios e conquistas, principalmente, no que tangeu à realidade do Distrito Federal. A equipe do OVES-DF, pois, viu-se constantemente instada a dialogar entre si, com as vozes adolescentes e com outras forças para materializar um esforço que, hoje, estou certo, orgulha-nos muito. Para coroar todo o processo, além das reverberações comuns a um trabalho do gênero, foi construído um Material Audiovisual, no qual está sintetizada essa inesquecível trajetória. Como guia também desse momento, posso dizer que, com a direção afetuosa de Silvana Neitzke, concretizamos um registro que, em nossa leitura, responde e alimenta a experiência de intervir com o foco de contribuir para a luta cidadã que apregoa o SINASE.

Isso posto, nestas palavras de fechamento, como coordenador do projeto-piloto OVES-DF, sublinho a abertura da Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS/DF) — por meio do Fomento 07/2022. De mesmo modo, valorizo o essencial apoio do Gabinete 24, do Deputado Distrital Fábio Felix, cuja emenda parlamentar viabilizou todo o trabalho desempenhado, do início ao fim. A partir de agora, finalizo minha participação, torcendo que a janela aberta, materializada no Relatório final do OVES-DF (disponível online na página do Observatório — www.violes.com.br/oves-df — , cuja organização por parte da pesquisadora Maria de Fátima Pinto Leal recebe meus aplausos aliás), ofereça um patamar sólido para breves ações futuras que façam valer a cidadania tão almejada há tanto por tantos. Que a atenção para o que têm a expressar as vozes adolescentes assistidas pelo sistema socioeducativo — e defendidas pela Constituição, pelo ECA, pelo SINASE e todos os esforços progressistas possíveis — mostrem chances efetivas de uma existência cidadã para nossos e nossas adolescentes: o presente mais próximo do futuro de um Brasil que precisa mesmo raiar.

Logo do OVES-DF (Daliana Cavalcanti e Gersiney Santos)

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Prof. Gersiney Santos

Pelo mundo social: analista, navegando em textos, refletindo sobre discursos. ▶️ apptuts.bio/gersineysantos