Sobre… Fios que compõem REDES DE MUDANÇA

Prof. Gersiney Santos
17 min readMar 21, 2021

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Diálogo realizado via ‘live’ a convite da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) no dia 29 de maio de 2020.*

Começou a impactar-me a ideia de que minha educação era uma espécie de desconforto, era o processo que não me premiaria com meu próprio e especial Sonho, e sim romperia todos os sonhos, todos os confortantes mitos da África, da América e de toda parte, deixando-me apenas com minha condição humana, com tudo que tinha de terrível. E havia tanta coisa terrível lá fora, mesmo entre nós. -

Ta-Nehisi Coates, em “Entre o mundo e Eu” (2015).

Arte do evento

Quando fui gentilmente convidado pela Profa. Ana Paula Rabelo, ainda no ano passado, para organizarmos uma visita à Unilab por conta de uma participação minha na Escola de Estudos Críticos, enchi-me de grande contentamento. Na ocasião, aceitei o convite por perceber a preocupação em pensar a linguagem como um instrumento fundamental nas relações sociais, operado pelo discurso, este, central para encararmos seriamente o funcionamento das relações de poder que nos constituem. Infelizmente, não conseguimos consolidar o encontro e o tempo transcorreu. Neste 2020, nosso diálogo voltou à tona. Exatamente em um período nada fácil dessas mesmas relações sociais: todos/as sabemos, a pandemia da COVID-19 e a reorganização global em um contexto que diversos/as especialistas têm chamado de ‘novo normal’. Eis que, neste momento, estamos (temos de estar) literalmente conectados/as para nos comunicar, e, hoje, para voltar a falar sobre linguagem. Por isso, por insistir nesse diálogo, minha mais profunda gratidão à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), ao Instituto de Linguagens e Literaturas (ILL), mais especificamente, ao Grupo de Estudos Críticos em Discurso e Sociedade (ATMOS), e, uma vez mais, à querida colega Dra. Ana Paula Rabelo — e à doutoranda Monique Lessa.

Comecemos, então.

Tudo é por um fio. Assim sendo, assim lendo as coisas, penso que devo começar esta fala remetendo-me a seu título: “Análise linguística e epistemologias de ruptura: o texto como estratégia para a mudança social” (ou como liricamente o reintitulei “Sobre Fios que compõem Redes de mudança”). Trabalhemos com parênteses — que, em geral, separam o expressado definitivo do expressado complementar: o tempo passa, mas títulos parecem manter-se com peso em muitas de nossas realizações; aqui não seria diferente. A partir do gentil convite, comecei a me questionar “como poderia eu contribuir em tempos tão instáveis como esses nossos?”, e, uma vez mais, a resposta estava tão, mas tão próxima: insistindo em falar sobre textos e sua posição privilegiada no trânsito de discursos para a manutenção e potencial transformação de paradigmas sociais. Lembremos, discurso, ele, “um elemento da prática social, modo de ação sobre o mundo e a sociedade” (VIEIRA & RESENDE, 206, p. 163). Tal entendimento é chave para pesquisadores/as analistas críticos/as do discurso, como é meu caso. Porque, minha gente querida que me acompanha, tudo é por um fio.

Estamos vivendo um momento histórico. Com todos os alcances que isso tenha. Há quase cinco anos, estamos imersos/as em um período de incerteza, ao qual muitos/as de nós foram direcionados/as, que contaminou de modo agudo os modos de ser do continental Brasil. Diante dessa conjuntura, complicado é manter-se inerte diante de tantos abalos. Se em nível individual (i.e., em rodas de conversa mais ou menos íntimas com colegas, amigos/as e família) isso se dá, em perspectiva mais abrangente, aqueles/as influenciadores/as sociais (em espaços de prestígio social como a cultura, as artes e a intelectualidade) parecem cada vez mais impelidos/as a revelar suas posições diante do que ocorre no mundo a sua volta. Professores/as e pesquisadores/as são exemplos de influenciadores/as sociais no lugar da intelectualidade; é preciso vestir a responsabilidade, posto que é irreversível a importância de saber de que lugar vêm suas ações e, mais importante, se são elas de fato orientadas para o mundo. É por isso que a ruptura nunca esteve tão bem-vinda. Tudo é por um fio.

Como um pesquisador/professor vinculado à visão discursiva crítica (nas bases da academia ocidental), parto epistemologicamente da Análise de Discurso Crítica (ADC). Como define a Dra. María Laura Pardo, a ADC é uma

disciplina da Linguística funcional (ramo linguístico cujo objetivo de estudo é a linguagem em uso e em contexto) cuja unidade de análise é o discurso (o texto mais o contexto não apenas da situação comunicativa, mas também social) e com um compromisso político; para tanto, busca desvendar como se constroem linguisticamente os discursos que, abusando do poder, promovem a marginalidade, a desigualdade e os preconceitos sociais. (…) Crê que a linguagem é ação, uma ação comunicativa que influi no que vivemos e no modo como vivemos; e, por outro lado, afirma-se na interpretação de que a mudança social é possível a partir da transformação nos usos do discurso por parte de uma comunidade. (PARDO, 2011, p. 27).

Parênteses. Desde minha inserção nos estudos superiores linguísticos, a posição mencionada pela Dra. Pardo — ou melhor, posicionamento — foi-me sempre exigido pelo trabalho conjunto com a excelente (e inspiradora) Dra. Viviane de Melo Resende, na Universidade de Brasília (UnB), há quase uma década. Sua lucidez nos trabalhos e pesquisas altamente atentos a temas relacionados a discurso e pobreza extrema iluminou em mim o acesso para este caminho que ora construo com vocês. O envolvimento com as relações discursivas entre linguagem e miséria — dupla inalienável para os fatos perceptíveis do racismo estrutural, nas palavras do Dr. Silvio de Almeida — provocou-me a decisão de seguir um percurso no qual ser linguista sinonimizava ser agente, em um mundo encoberto pela boçalidade das pretensas elites políticas e culturais brasileiras/latino-americanas. Sim: um/a analista crítico/a de discurso tem de lidar com o peso da linguagem. Afinal, somos estruturados/as, todos/as, por modos de ação, representação e identificação sociais viabilizados pela realização e manipulação linguísticas. Parênteses. Estou, obviamente, aqui, fazendo uma reorientação conceitual bastante reduzida, pois de teorias estamos por demais bem servidos/as. Sigamos o fio.

A lupa discursiva mudou minha maneira de ser. Senda algo dolorida. Ver discursivamente a lógica ocidental, abriu-me uma dimensão comigo mesmo, com meu Povo, com minha história. Jamais poderei renegar as influências que algumas pessoas da/na universidade me apontaram. Minha relação com a pobreza extrema — como orientando da Dra. Resende, por exemplo, desafiou-me a abrir os olhos e a mexer-me diante do histórico e constrangedor cenário configurado sistematicamente pela, nas palavras do Dr. Jessé Sousa (2017), elite do atraso brasileira. Meus trabalhos de mestrado e de doutorado (“O jornal Aurora da Rua e o protagonismo na situação de rua: um estudo discursivo crítico” e “A voz da situação de rua na agenda de mudança social no Brasil — um estudo discursivo crítico sobre o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR)”, respectivamente publicadas em 2013 e em 2017) colocaram-me diante da situação de rua e com a grandeza de me preparar para ver lados e possibilidades que a muitos/as não chegam. Gente que ora me acompanha: existe uma configuração conscientemente desenhada para tanto apagamento de cidadanias. Noto que seria uma palestra inteira para conversar sobre os resultados de meus trabalhos de pós-graduação; por isso, para hoje, para este momento, rememorar os âmbitos que acessei valem mais a pena. A oportunidade de ter quem me ouça, em tempos de tanta confusão, é um luxo que não pode ser negligenciado. É tudo.

Precisamos, em nossos alcances, romper com a fantasia brasileira, com o Sonho, desmascarado pelo jornalista Ta-Nehisi Coates (2015). Vi a situação de rua da perspectiva da má representação discursiva da mídia e, em um segundo momento, a partir da Luta por resistência. E é a resistência que me traz aqui, na verdade a reexistência (sobre a qual trataremos posteriormente). É por ela que aceito falar no meio tão controverso como o é a intelectualidade nacional. Tudo é por um fio, por isso é imperativo não restringir ações quando vemos direitos cidadãos e humanos sendo desfigurados em tempos de relativização genocida por parte dos mais altos cargos desta nação. Por um fio.

II

OK, mas como um/a acadêmico/a, como muitos/as de nós somos, deveria englobar a resistência em suas ações? Como isso seria possível? Para quê, afinal? Perguntas que explodem parênteses. Aliás bastantes mais perguntas cabem em nosso atual contexto. Partamos, pois, para um punhado de conselhos — pois títulos são títulos.

Minha constituição como ser neste mundo entende que é sempre preciso voltar para aprendermos com quem veio antes, com o que nos antecede. Assim, sugiro que voltemos todos/as para o básico — inclusive para as primeiras palavras desta reflexão -; para o que nos conecta; para o que nos faz seres sociais: a linguagem. Nas clássicas lições de John Lyons (1987), na academia ocidental, ela (a linguagem) não tem um conceito fechado — pelo menos, varia de acordo com a perspectiva. Já o Honorável Dr. Cheik Anta Diop (1974) foi firme em seus estudos no que toca a seu poder vital, mas, mais ainda, ao poder político da linguagem. Quem controla modos de linguagem impõe-se no mundo, já nos lembrou o Honorável Dr. Frantz Fanon (2008, p. 34): “existe na posse da linguagem uma extraordinária potência”. Então, o que, certa época depois, entendi por ‘discurso’, estava muito antes de eu até ser: o Honorável Dr. Diop, assim como o Honorável Dr. Fanon já haviam trazido a força da comunicação e eu não sabia. Por que não sabia? Porque ninguém, naquele então processo de formação acadêmica, falou-me desses grandes nomes. Por que isso aconteceu? Porque quem me ensinou — muitas de minhas referências profissionais -, provavelmente, desconhecia também. Isso é a ilustração de que nem mesmo o espaço tido como de formação superior está isento de reproduzir discursos de quem manipula o mundo social. Aliás é inclusive por meio de locais de prestígio social — como o espaço acadêmico, por exemplo — que ressignificações quaisquer têm ou não efeito. A universidade é um campo que, há muito, debate-se entre a falta de oxigênio e a dificuldade de se abrir genuinamente às plantas plurais que conseguiram ter ali fecundadas suas sementes.

É por isso que a ruptura deve ser por nós levada a cabo, e pela linguagem: nossos textos são instrumentos de transformação, por encapsularem estruturas linguísticas que projetam mundos da sociedade. Então, desse modo, posso enfim começar as sugestões de alguém que, com a responsabilidade de honrar quem veio antes, observa e que se exige agir diante do cenário que vivencia, com as possibilidades que tem.

Novos parênteses para destacar que esta fala não está restrita a pessoas ligadas à área de letras ou a especialistas linguísticos/as funcionalistas: o momento é de urgente reflexão conjunta, de fios que componham redes. Assim, ratifico que o desenvolvido a seguir são ideias postas para serem compartilhadas, que se afastam da suposta verdade que a obsessão estéril de certos/as intelectuais ainda persegue. Estamos pensando. Juntos/as. Em rede. Redes.

Dito isso, minha primeira sugestão — retomando as questões trazidas — é que todos/as passemos a encarar diferente os textos que circulam no mundo social (texto aqui entendido em sentido de amplos blocos semióticos (comunicativos), i.e., verbais e não verbais, escritos e audiovisuais) de modo estratégico. Mas fazer isso de verdade, não com aquele pensamento de ‘eu sei que as coisas funcionam assim, li sobre, escutei alguém explicando, mas é a vida’ (o que, por si só, já é adotar uma postura política bem significativa); ver diferente os textos se refere à percepção de que os que consumimos, produzimos e distribuímos são as vestimentas de discursos potencialmente férteis cujas flores e frutos criarão ou não raízes, dependendo das formas de sua disseminação. Aí, ainda nesse primeiro conselho, perceber-se no processo como agente ao refletir sobre quais discursos a ação desempenhada no mundo (de consumo e de distribuição) tem apoiado — bem como quais influenciadores/as têm sido enaltecidos/as em nossas práticas públicas cotidianas. Assim, recomendaria que analisássemos os textos em dois diferentes contextos: uma análise mais básica relacionada à ação que recomendei de colocar-se diante das escolhas de consumo e distribuição textuais — ou seja, de quais textos estamos ressonando os temas, qual nosso propósito acional com a escolhas públicas e se o produtor está atento às questões de transformação social que o mundo necessita. Em outras palavras, chamar para si a responsabilidade de ser um elemento influente no mundo, que em cada texto repercutido há a possibilidade forte de afetarmos outras pessoas e suas visões de mundo. Outro contexto possível, mas mais específico, diz respeito ao trabalho textual acadêmico reflexivo. Neste momento, dirijo-me a estudantes e pesquisadores/as que ocupam espaços na academia. Fios de uma rede.

III

Acredito ser chegado o momento no qual as redes precisam se dar de modo mais efetivo possível. Vocês que me ouvem, que estão na academia ou têm contato com quem está, assim como eu, devemos não mais nos contentar em estar no espaço universitário como se fosse uma extensão da sala de aula tradicional. É preciso, desde já, enxergar a potencialidade do trabalho coletivo, do trabalho reticular e plural. Mas é preciso também, antes de qualquer coisa, ver que se trata de um trabalho, ou seja, um processo no qual precisamos todos/as nos engajar e reorganizar as mentalidades programadas pelas elites do atraso deste país: acessar os bancos de ensino superior não é fazer parte de um espetáculo de, com a licença do trocadilho, superioridade, ou mesmo um episódio de alguma série pop de streaming. Para essa quebra, os estudos críticos do discurso oferecem uma possibilidade de percepção aprofundada (dos mencionados processos mascarados pela linguagem nas lógicas de opressão). Diversas pesquisas oferecem métodos de analisar os textos com objetivos reveladores quanto ao modo disruptivo no qual a sociedade ocidental se estrutura desde séculos atrás. Assim, trabalhos de nomes como Dra. Ana Lúcia Silva Souza (perspectiva de novos letramentos), Mestre Allan da Rosa (pedagogia de identidades), Dr. Wanderson Flor (relações filosóficas ligadas à ancestralidade), Dr. Tiganá Santana (recuperação da lógica ancestral como ressignificação da experiência social), Dra. Carla Akotirene (temas de interseccionalidade e papéis sociais) e a Honorável Beatriz Nascimento (com sua defesa por narrativas políticas de protagonismo (RATTS, 2016)) são exemplos de como é possível investir energia em uma percepção reoxigenada do papel da relação entre linguagem e sociedade, como um portal de acesso a outras realidades. Em termos acadêmicos, tais autores e autoras oferecem um potente modo de construir conhecimentos e, mais importante, de compartilhá-los, de vivenciá-los para que possamos aprender em comunidade. São o que chamo de epistemologias de reexistência, ou, neste texto, epistemologias de ruptura: um fluxo de trocas com vistas a fazer germinar novos potenciais interpretativos da realidade, dos quais se pode gerar conhecimento coletivo, acessível e plural. São epistemologias (como as mencionadas em Nascimento, Flor (Nascimento)), mas também metodologias (conforme citadas em Rosa, Pardo e Souza) que orientam aos modos como esse conhecimento pode chegar aos pontos fundamentais, elegem e estimulam maneiras descentradas do ego da academia ocidentalizada. É importante voltar a mencionar que também esses processos passam, indissociavelmente, pelos textos: por isso, minha defesa em não mais tratarmos tais semioses, esses blocos comunicativos cotidianos, como estruturas negligenciáveis ou resumidas aos preceitos da gramática normativa. É extremamente necessário que nós, acadêmicos/as, reorganizemos nossa relação com os textos (compartilhados e publicados nas redes sociais, os das mídias tradicionais escritas e audiovisuais, na publicidade, na política, no entretenimento etc.), pois estamos, como já mencionei, no lugar de influenciadores/as de visões de mundo: daí, a questão da análise crítica dos textos, que, como conselho, ganha mais quando aliada ao trabalho com analistas críticos/as do discurso.

Por fim, ainda dentro do tema das respostas às questões iniciais, reposiciono o foco para a produção de textos a partir de uma perspectiva de ruptura, ou seja, crítica com alto grau de reflexividade — termo entendido aqui como uma consideração alimentada pela percepção ampla (incluindo as ambivalências inerentes) das construções sociais e pelo posicionamento orientado à mudança de paradigmas opressivos. A produção de textos de ruptura, portanto, é essencial para que agreguemos mais do que a necessária resistência, mas também uma reexistência (retomando o que discute a Dra. Souza, com seu estudo do letramentos de reexistência) em nossas práticas. Sem dúvida, escrever (citando nomes engajados na mudança social) é um dos pontos que possibilitam ações reflexivas e de potencial efetividade nos espaços de luta por cidadania. É preciso, ainda, finalizar este momento de orientações no terreno movediço do fazer científico-crítico: o questionamento de como isso tudo seria possível.

IV

Nestes momentos finais de minha fala, quero concentrar-me no modo como vejo a viabilidade do aqui defendido. Há algum tempo — desde o fim do doutorado -, venho seriamente pensando acerca de como levar a cabo as questões de insatisfação que levantei nesta reflexão. Baseado em minha pesquisa com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), por haver participado de processos de construção do movimento social e do Estado, percebi como necessário eleger caminhos estabelecidos a partir de um esforço estratégico e integrado; a essa reflexão dei o nome de Redes Pragmáticas (RP) (SANTOS, 2017). Em linhas generalíssimas, as RP dizem respeito a um trabalho articulado em quatro vértices acionais (a saber, 1. Exercício da reflexividade; 2. Intervenções antirretóricas; 3. Visibilidade estratégica e 4. Produção reflexiva-social) relacionados ao tema da reflexividade, da ação aplicada e não exclusivamente dependente de teorias, da difusão acional estratégica e da produção de gêneros de reexistência. Sobre o tema, dediquei a última parte de minha tese e ultimamente ele tem sido foco de algumas reflexões já compartilhadas (por exemplo, em Santos (2019)), e de outras já a caminho, para um futuro conhecimento e contribuição da comunidade. Mais especificamente, menciono as RP aqui por entender que se trata de uma alternativa para a reflexão conjunta, na medida em que não desejo, com o rótulo, apontar fórmulas de fim das opressões, mas sim deixar aberto um recipiente a ser moldado e preenchido a partir de uma patente conscientização entre o papel da teoria e da prática para o trânsito discursivo — e para a efetividade de projetos de mudança social.

Tendo assim feito a apresentação dessa proposta de epistemologia de ruptura, poderíamos voltar-nos às possibilidades aventadas, em um primeiro momento, pelas RP. Farei isso, a título de ilustração, conectando (melhor dizendo, brevemente desdobrando) a questão de como seria possível unirmo-nos, a partir de nossos lugares sociais, às lutas de resistência utilizando o texto como estratégia para virtuais mudanças paradigmáticas. Reitero, neste esforço reflexivo, a posição na qual possuo relativa força social e de onde me baseio: a partir de uma perspectiva discursiva — tendo em vista eu ser um linguista analista de discurso. Assim, o tema da análise dos textos volta ao centro, mas, desta vez, a análise linguística tomada a partir do viés discursivo. Em outras palavras, observar atentamente como a estrutura da língua, quando investigada com cuidado mais intenso, pode nos apontar quais discursos estão por trás e, desse modo, mapear quais grupos de poder hegemônico estão valendo-se da língua e da linguagem para instaurar domínios. Como demarquei, nesta fala especificamente, proponho a abordagem da língua, da estrutura verbal (escrita e falada) utilizada para representar contextos sociais (ou seja, notícias, falas, narrativas quaisquer passíveis de serem retomadas em veículos publicizados) a partir de uma abordagem que não se resuma à decodificação. Para tanto, dentro da perspectiva das RP, o trabalho analítico crítico precisaria estar ancorado, minimamente, em uma teoria e uma epistemologia acessíveis e, como costumo definir, expansíveis. Desse modo, volto-me à teoria básica linguístico-discursiva do Método Sincrônico Diacrônico de Análise Linguística de Textos (MSDALT), da Dra. Pardo, à qual poderia unir aos postulados metodológicos da Pedagoginga do Mestre Rosa, a fim de pensar ações inseridas, para este momento reflexivo, no quarto eixo das Redes Pragmáticas (Produção reflexiva-social). Dentro das RP, seria necessário, após um processo de reflexividade (equivalente ao primeiro vértice das RP), buscar um projeto a médio prazo para implementação de ações discursivas planejadas dentro de uma problemática social: utilizemos como exemplo meu trabalho discursivo com a população em situação de rua e o MNPR (que mencionei quando fiz referência aos trabalhos de pós-graduação desenvolvidos na UnB). Ainda dentro do nível de ilustração com o MNPR, pensemos como o trabalho acadêmico poderia contribuir para a situação das pessoas em situação de rua em tempos de pandemia da COVID-19. Para tanto, precisaríamos articular conhecimentos (de vários letramentos sociais) para a construção de intervenções (eixo 2 das RP) que trouxessem à tona uma realidade de não assistencialismo às representações (eixo de número três das RP), por exemplo, televisivas.

Para tanto, pensando do ponto de vista de uma aplicabilidade mais abrangente, gêneros discursivos acadêmicos (artigos, monografias, dissertações e teses), por si só, poderiam não alcançar uma intervenção ampliada de potencial transformacional (ou seja, analisar e publicar páginas e páginas de textos analíticos com a abordagem do MSDALT as representações da mídia de massa sobre a população em situação de rua e o Estado), entretanto a relação presencial, participativa e colaborativa com quadros e lideranças do MNPR poderia atribuir um papel mais ampliado de direcionamento referente inclusive aos resultados das análises críticas (das representações midiáticas) com o conhecimento experiencial (o letramento) da mobilização do movimento social. O diálogo — operacionalizado pelo que apresenta a Pedagoginga -, que exigiria uma formatação plural (academia, movimentos sociais de diferentes frentes, especialistas, classe política representativa e pessoas interessadas na Luta) poderia apontar caminhos possíveis de serem implementados para uma pressão social multimodal (escrita, audiovisual intervenção presencial etc.). O trabalho articularia, então, diversas vozes sociais que, por redes de ação, contribuiriam de modo teórico-prático com base nas experiências trazidas para um caldeirão acional. Redes pragmáticas.

É desse modo, por fim, que gostaria de fechar minha fala iniciando um diálogo com vocês que ora me acompanham. Ao propor este momento de reflexão, ofereço a flor de minha Gratidão e coloco-me automaticamente à disposição para compartilharmos — discordando inclusive sobre — novos possíveis modos de estar na academia e, principalmente, em um mundo que não naturalize a violência e o apagamento sociais. Não devemos, de modo algum, esquecer que a universidade tem como um de seus alcances a realidade extramuros: as pessoas que estão fora desses espaços de prestígio são parte de nós, cidadãos e cidadãs brasileiras. Na medida que o conceito da cidadania percebe-se solapado por interesses obtusos, cabe a nós, com alguma força acional, propor reflexões e redesenhar cenários a fim de preenchê-los de modo plural e estratégico. É nesse sentido que precisamos ouvir o mundo social e igualmente melhor a nós mesmos/as, uns/umas aos/às outros/as; urge estarmos atentos/as aos discursos que se propõem à ruptura com uma lógica que, por colonizada, por não conseguir comprar as nuvens, deseja por cela e estribos em seres que tem o Sol na cabeça. Por tudo o que compartilhei aqui, para mim, os textos mostram-se como modos de ampliar a Luz, de acessarmos dimensões que estão embotadas pela quantidade de confusão inadvertidamente formulada para que os lugares sociais hegemônicos mantenham-se como estão há mais de quinhentos anos desse lugar chamado Brasil.

Por estarmos ainda sob o efeito de outra onda desse novo momento histórico — sendo inclusive testemunhas aturdidas de novos modos de ser e estar — , não podemos nos conformar em ver as violências passarem, sem agir, sem nos unirmos em um projeto efetivo. Por isso, penso e defendo epistemologias originais de ruptura; por isso que vejo potencialidade em uma visão crítico-reflexiva da linguagem; é por isso que sou analista crítico do discurso; é por isso que acredito nas Redes Pragmáticas: sou um entusiasta porque temos os textos como material essencial de/para a ação. Pode ser algo ousado? Algo inocente? Se assim for, faço minhas as palavras da Dra. Resende (2017): “Eu creio que a crítica radical tem de guardar também ingenuidade, porque só o ingênuo é capaz de crer no utópico a ponto de realizá-lo”.[1] É tudo por um fio e além pelas redes.

Neste momento decisivo, este diálogo estabelece-se contando que mais braços possam unir-se aos meus e que, juntos, em meio às diferenças, nossa união se dê pelo interesse de que opressões, preconceitos, violências e violações sejam vistas de frente, pois entendo que o inimigo só existe quando identificamos seus passos: aí, o combate é sim justo e possível.

Este texto é pelos/as mais de 20 mil mortos/as vítimas do Estado e da COVID-19 (até o meio do ano de 2020) e, em especial, à memória de Demétrio Campos. Para você, meu querido irmão Demétrio, Flores e Luz. Seguimos.

Gratidão!

[1]”Decolonizar os estudos críticos do discurso: por perspectivas latino-americanas”, texto apresentado por Viviane de Melo Resende como conferência plenária no XII Congresso da ALED, Santiago, Chile, 18 de outubro de 2017.

REFERÊNCIAS

COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. 1a ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

DIOP, Cheik Anta. The African Origin of Civilization — Myth or reality. Illinois: Lawrence Hill Brooks, 1974.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador, 2008.

LYONS, John. Lingua(gem) e lingüística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

PARDO, María Laura. Teoria y metodologia de la investigación lingüística: método sincrónico-diacrónico de análisis lingüísitco de textos. Buenos Aires: Tersites, 2011.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica; sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Insitituo Kuanza; Imprensa Oficial, 2006.

ROSA, Allan da. Pedagoginga, autonomia e mocambagem. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.

SANTOS, Gersiney Pablo. A voz da situação de rua na agenda de mudança social no Brasil — um estudo discursivo crítico sobre o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Tese (Doutorado em Linguística). Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

SANTOS, Gersiney. Linguagem e decolonialidade: discursos e(m) resistência na trilha da aquilombagem crítica. In: Viviane de Melo Resende. (Org.). Decolonizar os estudos críticos do discurso. 1ed.Campinas: Pontes, 2019, v. , p. 11–202.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento hip hop. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

VIEIRA, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso (para) a crítica: O Texto como Material de Pesquisa. Brasília: Pontes, 2016.

*A íntegra desse diálogo pode ser conferida aqui.

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Prof. Gersiney Santos

Pelo mundo social: analista, navegando em textos, refletindo sobre discursos. ▶️ apptuts.bio/gersineysantos